Entrevista: a música feminista, artesanal e reflexiva de Fernanda Branco Polse

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Mais um dia comum de um estudante jornalismo, atrasado, espremido no metrô de São Paulo, com seus fones de ouvidos (eles estão sempre lá). Na escuta, a última edição do programa Ronca Ronca até ali, comandado pelo indefectível Maurício Valladares. Bob Dylan, Zumbi do Mato, Kid Vinil, Cidadão Instigado. A tracklist estava ótima, como sempre.

O garoto está chegando a seu destino, mas começa um som desconhecido, que lhe toma atenção. Valladares anuncia que a canção se chama "Erótica", da cantora londrinense Fernanda Branco Polse. O estudante, curioso, corre para conhecer o trabalho a fundo da cantora, que lançou seu disco de estreia,"Bicho Branco Polse", no ano passado  Abre o Spotify, fuça o Facebook, abre o Google e decide que, apesar de utópico, precisa mostrar sua descoberta para o mundo.

Mas afinal, quem é Fernanda? Qual é seu som? O que é este Bicho Branco Polse? Você confere tudo isto pela entrevista concedida pela cantora ao Eufonia, inspirada por Mauricio Valladares e, em especial, pela edição 233 do Ronca Ronca.


EB:  Muita gente intitula trabalho de estreia homonimamente, podemos considerar dois terços do título de seu álbum assim né. Afinal, o que é esse Bicho Branco Polse?
Fernanda: Então, tem gente que acha que o bicho veio por conta dos inúmeros animais que eu cito durante as músicas (risos). Se prestar atenção tem cavalo, cisne, corvo, pelicano, coruja, gaivota, pavão... Mas na verdade eu não acho que o disco chama bicho porque eu falo sobre bichos. Acho que eu falo sobre bichos porque tenho uma fixação com a temporalidade animal. E é por isso também que ele chama bicho. 

A gente vive na cidade e tudo o que existe de bicho são os pets, ratos e baratas. Às vezes a gente vê um cavalo, quase sempre em condições triste, diga-se de passagem. E eu acho incrível como cada animal tem uma vibração única e como que eles foram utilizados historicamente como metáforas para contar histórias. Acho que não é a toa. Não é a toa que começo a música "pillow fight" com gaivotas chegando do hemisfério norte e, de repente, do chão molhado, nasceu um corvo. Essas duas aves trazem, para mim, mensagens diferentes. Uma é uma ave caçadora de peixes, uma ave solar, que migra da América do Norte para a América do Sul no verão. 

Gaivotas são os animais que voam distâncias mais longas, são mensageiras e em algumas histórias dizem que elas carregas a luz do dia. Já o corvo é um mal presságio para alguns. Eu já o coloquei na música como entidade que me contou os segredos da lua. Para mim isso fala sobre metamorfose e magia. É um tanto nonsense também. Foto: Luíza Palhares

Mas o fato é que eu não pensei no nome, ele veio até mim. Eu estava numa sessão de acupuntura e eu me vi segurando meu disco (risos). E ele chamava "Bicho Branco Polse". Embora eu tenha duvidado do nome em alguns momentos, resolvi mantê-lo, pois acredito muito nesses insights. Então é isso. É Bicho Branco Polse porque não é Fernanda Branco Polse. É Branco Polse, genderless. Porque Fernanda já traz uma mulher junto. E embora eu seja uma mulher cis, às vezes gosto de me pensar pra além do que é ser mulher. Porque às vezes ser mulher me parece um jeans menor que meu número. E ser bicho me deixa à vontade.

EB:  E já desde o começo do disco temos letras bem significativas, fortes, com representatividade. A partir de quando você começou a compor e quando você decidiu que música era mesmo sua praia?
Fernanda: Eu lembro de fazer uma música com uns dez anos. Pensando hoje, acho que essa canção que eu fiz aos dez não tinha uma poesia muito bem resolvida, mas já era sincera e falava sobre a minha realidade pré-adolescente (risos). Depois disso, quando eu tinha uns 13 anos eu entrei em um projeto de extensão da Universidade Estadual de Londrina onde comecei a estudar música antiga. Aí fiquei imersa nesse grupo por três anos. E enquanto eu tinha essa idade, os meus colegas do grupo já eram universitários, alunos do curso de música e artes cênicas. 

Esse período trouxe uma vivência muito rica para a adolescente que eu era. Eu, que estava lidando com o contexto colégio, bullyngs, padrões, etc, me encontrei no meio desses colegas bem resolvidos com sua sexualidade, assumidamente gays ou bis, morando sozinhos, fumando maconha na própria casa, aproveitando uma liberdade que eu ainda não tinha, mas que eu aprendi a observar. Sempre fui muito observadora e filosofava sobre as coisas. Nessa época já comecei a pensar, por exemplo, sobre orgulho gay, legalização da maconha e, de certa forma, sobre feminismo. E para mim, compor é pensar sobre o mundo. É um recorta e cola do mundo. É compor um mundo em si. É imprimir o mundo. 

 "Acho ser mulher uma guerrilha, mas eu aprendi com a vida o caminho das águas, caminho que contorna e segue. Em vez de ser britadeira. Porque assim chego em outros lugares, outros espaços de poder. E os ocupo enquanto mulher."


Claro que tudo isso aliado à um tipo de fluência. Nessa época eu ainda não tinha fluência, acho que adquiri isso mais tarde. Foi com 18 que comecei a compor muito! Fazia muitas músicas, tipo toda hora uma nova canção. Aí eu era aquela figura de 18 anos que tinha um punhado de canções, mas não tinha a mínima ideia do que fazer com isso. Tive duas bandas, a Polka Dots e A Beleza de Gertrudes, nenhuma foi pra frente (risos). A única letra que era dessa época e que entrou no disco é "Deserto". 

Nessa época eu cursava jornalismo em Londrina e quis muito entrar no curso de Artes Plásticas. Aí eu tinha uma história mística com Minas Gerais, porque meus pais moravam em Minas quando eles engravidaram de mim, então eu tinha esse desejo de "voltar" para Minas. Aí prestei vestibular lá e passei. Transferi jornalismo e fazia os dois cursos. Nesse momento a música era algo presente, mas era tímido. Aí de cara em BH eu já comecei a namorar um músico e acabamos vivendo juntos por seis anos. Aí musicalmente a minha cabeça girou! Eu conheci o afrobeat, através da banda do boy. Além de ter tipo uma imersão na vibe musical de BH, de Minas, Clube da Esquina e etc. Nessa época eu fazia performance e sempre tinha músicas nas minhas performances, eu bolava as trilhas e tal.

Algumas letras são dessa época que eu era casada, tipo "Cisne", "Erótica", "Gal", "Oxossi", "Laranja Neon", "Pillow Fight". Dessas, algumas eu já tinha a melodia pronta, outras fui pensar em musicar já no processo do disco, como "Oxossi", e outras eu experimentei junto com uma banda instrumental chamada ELECTROPHONE. Eu levava as letras e a gente pirava. Fizemos algumas apresentações, mas não foi pra frente o projeto. Aí eu resolvi gravar o disco e que seria solo.

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EB: Ouvi uma definição da sonoridade do seu trabalho bem interessante, que é esta sonoridade artesanal, e claro, os músicos envolvidos no projeto são fundamentais para isso. Gostaria que falasse sobre os músicos que tocam no disco e como você os encontrou.
Fernanda: Sim, o disco tem uma sonoridade bem artesanal! Acho que grande parte disso é responsabilidade do Leonardo Marques, que produziu o disco. O Leo tem um estúdio chamado Ilha do Corvo e o lugar é uma ilha mesmo, numa sala de uma galeria comercial de uma avenida bem movimentada de Belo Horizonte, numa região bem central. Ele é um mago dos timbres e sonoridades! Pra além dos rótulos de produtor musical, engenheiro de som e etc, o Leo é um artista. 

Eu já entrei em vários estúdios, mas nem todos tem uma vibe de casa de artista, lugar de fazer arte. Normalmente parecem lugares onde você chega com algo que já aconteceu em algum outro lugar pra gravar. No Ilha do corvo eu sentia que ali, naquele espaço e naquele tempo, algo podia acontecer! O espaço tem um tempo dilatado, o Leo é desacelerado, concentrado. Te oferece um café. Parece fazer as coisas com calma. Eu mesma sou super acelerada (risos). Eu medito pra conseguir ficar mais zen, porque eu sou dessas pessoas que consegue fazer muitas coisas ao mesmo tempo, sem sofrer com isso. Aí quando eu entrava lá eu ia desacelerando e conectando com o disco, com o projeto. 

Foi um projeto longo. A primeira vez que conversamos sobre gravar foi tipo em maio de 2015, quando eu ainda estava tocando com outras pessoas. Aí em outubro eu procurei ele querendo gravar solo e em novembro começamos a gravar. Aí como era solo, eu não tinha mais banda e não tinha um plano, mas confiei no caminho. O Leo foi sugerindo músicos, outros eu fui sugerindo. A primeira coisa que gravamos foi a voz, porque eu já sabia as melodias e o que eu queria. Então definimos um bpm, e eu cantei. E foi a partir disso que foram definidos os tons e que tudo foi se construindo. Foi um disco à serviço de uma voz, de uma palavra. Depois gravamos o baixo com Dieguile Batista, que é um parceiro das antigas, já fizemos muitas músicas juntos.

O Diego foi a peça de confiança, o peso, o grave. Porque ele me conhecia e conhecia o som. Depois gravamos a bateria com o Pedro Handam. O Pedro eu não conhecia antes, foi sugestão do Leo, porque eles tocavam juntos no Transmissor e atualmente tocam juntos no Congo Congo. De cara eu aceitei, super confiei na indicação e não poderia ter sido mais acertado! Pra além das bateras lindas que foram gravados, o Pedro é uma pessoa sensível que adora conversar, sinto que ele super participou do disco. As guitarras que gravou foi o Gustavo Cunha, que toca no Iconili e no Congo Congo. 

O Gustavo foi meu parceiro durante muitos anos e várias das músicas vieram dessa parceria. Ele, por exemplo, é co-autor da letra de "Oxossi". Aí depois começaram a vir os metais, gravei o sax com o Henrique Staino, que é do Iconili e do Graveola. A gente já tinha tocado juntos no ELECTROPHONE e foi bom ter ele no projeto, com as linhas de sax que eu tanto amo. Depois veio o Victor Magalhães, que é do Congo Congo e Magalhães Trago Seu Amor. O Victor é uma figura que eu gosto muito. Ele e o Gustavo moravam juntos e a gente conviveu um pouco mais de perto há muitos anos. Aí com o tempo os caminhos descruzaram.

"Embora eu seja uma mulher cis, eu às vezes gosto de me pensar pra além do que é ser mulher. Porque às vezes ser mulher me parece um jeans menor que meu número. E ser bicho me deixa à vontade."


Só que quando eu estava no processo de gravação do disco, o Victor tava gravando junto com o Teach Me Tiger lá no Ilha do Corvo, então a gente começou a se encontrar e eu chamei ele pra gravar em "Cisne". Adorei o resultado, fiquei muito feliz mesmo. Aí depois foi a vez da Naroca trazer pulsação, coração, ventre pra coisa toda. A Naroca é uma percussionista maravilhosa, toca em vários projetos, lidera blocos de carnaval, toca no Iconili, no Chama o Síndico. Foi um antes e depois a presença da Nara no projeto. Depois disso foi a vez do próprio Leo acrescentar as teclas. Synth, mellotron, stylophone, breakaway, guitarra havaiana, etc. Eu também trazia coisas que eu queria, falava "Leo, nessa música acho que tem que tem isso, aquilo... gravei uma linha de guitarra pra essa..." e ele super acreditava. 

Em "Laranja Neon" eu queria muito um trombone, sabia certinho o que queria, mas ele achava que estava pronto. Eu insisti, né, porque meu áries nunca falha. Chamei o João Machala pra gravar e no fim foi mara ter acrescentado, não consigo imaginar sem. Foi a última coisa que fizemos no disco antes da mix e master. Aliás, "Laranja Neon" é uma música que eu adoro e que eu fiz em parceria com um outro músico incrível da cidade, o Rodolpho Soares.

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EB: Uma das canções que achei mais interessante no disco é “Soho Grand Hotel” e tem a participação do Marcelo Veronez. Como aconteceu essa parceria e o quão importante ela é para o disco?
Fernanda: O Marcelo é uma figura muito importante na cena de BH. Ele é uma figura que eu admiro muito e, aquela coisa, num certo momento a gente começou a se aproximar. Primeiro foi porque ele leu uma publicação independente chamada O QUE VOCÊ QUEER que eu escrevi e ilustrei em parceria com a Ana Luisa Santos, que é uma artista incrível e minha namorada há anos. A gente estava escrevendo umas dramaturgias juntas, publicamos e o Marcelo, que é super do teatro, um dia falou que tinha curtido muito e que queria que a gente escrevesse uma letra de música para ele. 

Eu já estava no início da gravação do disco e comecei a reunir umas anotações para a tal música encomendada. Foi assim que nasceu "Oxossi", a última do disco. Aí mostrei pra ele e começamos uma paquera artística (risos). Aí chamei ele pra gravar Soho, achei que tinha maior sintonia ele cantar essa música que diz "How I wish you were queer", porque o Marcelo super milita nas frentes LGBTIQ+. Por fim fizemos umas outras coisas juntos! Ele dirigiu uma cena curta com a Kayete, que é uma figura trans incrível de BH, e chamou a Ana pra escrever a dramaturgia e eu para fazer a direção de arte, trilha, figurino, etc. Parceria fértil.

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EB: É claro que não poderíamos deixar passar a temática feminista, também presente no álbum. Em um mundo polarizado que vivemos, é essencial que o tema esteja cada vez mais na música em geral?
Fernanda: Sim, é muito urgente e importante que o tema esteja presente, mas pra além da temática, acho que é igualmente urgente que outros corpos femininos (e feministas) ocupem lugares dentro do mercado da música, mesmo que seja pra falar de outros assuntos.

Numa dimensão simbólica, acho que o maior desafio de se fazer uma letra é trazer alguma reflexão, uma possibilidade de expansão, transmitir coragem, quem sabe trazer alguma mudança, alguma perspectiva, alguma poesia. É ocupar esse lugar de fala que é pegar um microfone, gravar um disco, imprimir em ondas a sua forma de ver o mundo. O mundo segundo uma mulher. Acho que entender esse lugar e ocupá-lo com responsabilidade é muito importante. Claro que eu ainda sou uma cantora em trabalho de estreia (risos). Minha música ainda está em expansão, está numa dinâmica de crescimento, pode chegar em mais ouvidos ainda. Mas, mesmo assim, até eu lançar esse disco eu sentia que tinha muita coisa para dizer e que ficava na gaveta. Que ficava no quase. 

"Numa dimensão simbólica, acho que o maior desafio de se fazer uma letra é trazer alguma reflexão, uma possibilidade de expansão, transmitir coragem, quem sabe trazer alguma mudança, alguma perspectiva, alguma poesia. É ocupar esse lugar de fala que é pegar um microfone, gravar um disco, imprimir em ondas a sua forma de ver o mundo."


É uma loucura esse lance da urgência da comunicação, né? Mas eu sentia e ainda sinto isso muito forte. Então esse som primeiro me transforma e depois, quem sabe, pode ser transformador para outros, para outras. Da mesma maneira que eu escuto tantas inúmeras músicas, vejo trabalhos de arte e penso: "que bom que esse artista fez isso, que bom. Porque isso muda a minha vida". Não quero ser pretensiosa, mas acho a dinâmica da música muito interessante, porque ela pode chegar em ouvidos e corpos que eu nunca imaginei! Meu disco está à venda no Japão, por exemplo. 

É diferente das artes plásticas, área em que atuei anteriormente, onde eu sentia a matéria mais restrita ao tempo-espaço. Na música, pessoas de lugares que eu nunca fui, já ouviram o som! E isso é pra além de mim, da Fernanda. Eu acredito que o que eu quis dizer com alguma letra não dá conta do que de fato eu disse. Porque o que eu disse, está sujeito à maravilha que é o criar junto de quem escuta. Acho que, nesse sentido, ser mulher na música é muito dharmico.

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EB: Expor temas sociais e políticos não faz com que você corra o risco de ter um público seleto demais e consequentemente pequeno? Você vê que suas músicas chegam também às pessoas que têm opiniões que diferem do seu discurso?
Fernanda: Olha, acho que corro esse risco sim. E isso é algo que eu não pensava antes, mas agora eu penso, porque agora eu percebo como é um público pequeno. Mas como poderia ser diferente? Essa é a minha colagem de mundo, é isso que comunica com minha subjetividade. Acho que seria esquisito se eu forçasse para fazer um tipo de composição diferente, como uma necessidade para atingir mais gente. Mas, ao mesmo tempo, eu adoro me ultrapassar e me surpreender, acho que pode rolar novas vibes por aí.

EB: Finalizando, qual a parte mais difícil de ser mulher e artista hoje em dia, em especial, ser uma artista com um trabalho de estreia?
Fernanda: Num sentido prático, ser mulher na música é um desafio às vezes chato. Primeiro porque a maioria dos músicos são homens. E eles são bons, é verdade, mas o trabalho não é só como você toca o baixo ou a bateria. O trabalho é um ritual. É como você chega no ensaio, como você se prepara. Como você responde (ou não responde) os emails de trabalho. Como você se porta. 

E se for pensar os críticos de música no Brasil são a maioria homens. E será que eles estão interessados em ouvir o tipo de música que eu faço? Será que eles estão abertos? Alguns estão, claro, amém! Mas e outros? 

Tem uma coisa em particular que me irrita muito que é quando me perguntam se eu toco algo ou se eu "só canto". Recentemente eu até fiz uma música em parceria com a Júlia Branco que fala "Você pergunta se eu toco ou se eu só canto. Eu toco, eu toco. Eu toco corações, eu toco almas. Toco uma para mim, não para você, eu toco o terror, eu me toco". Uma amiga minha estranhou: "Nossa, mas que letra direta... Não parece você".

Tem hora que não rola sutileza, porque sutileza não ressoa em quem não tem a vibe sutileza. Então você tem que ser direta e reta. Sem ficar combativa demais, né, porque se não o clima também vai por água abaixo e fica péssimo trabalhar assim. Eu acho ser mulher uma guerrilha, mas eu aprendi com a vida o caminho das águas, caminho que contorna e segue. Em vez de ser britadeira. Porque assim chego em outros lugares, outros espaços de poder. E os ocupo enquanto mulher.

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