Istoé Gente reporta a estrada de Luiz Melodia - #ValeaPenaLerDeNovo #03

Foto: Divulgação

No último 04 de agosto perdemos um grande nome da nossa música nacional. Luiz Melodia nos deixou aos 66 anos de idade, em decorrência de um câncer na medula óssea. Para lembrar e celebrar a obra do cantor, trazemos uma reportagem de 2003, da Istoé Gente. Na ocasião, Luiz Melodia completava 30 anos de estrada, aos 52 anos de idade. Confira:

Por Luís Edmundo Araújo, para a Istoé Gente

“Vai ter entrevista?” A pergunta de Luiz Melodia, enquanto se preparava para as fotos, dava o tom do humor do cantor na quinta-feira 3, após uma exaustiva viagem para um show em Belém. Visivelmente cansado, livrando-se dos resquícios de uma forte dor de dente na véspera, Melodia não transparecia qualquer vontade de conversar. Puro engano. Num passeio por alguns dos pontos mais frequentados pelo músico na zona sul carioca, o filho do falecido sambista Oswaldo Melodia falou da infância no Morro de São Carlos, no Estácio, centro do Rio, ao show marcado para a quarta-feira 9, no Canecão, em comemoração aos 30 anos de carreira.

No roteiro de Melodia, 52 anos, a primeira parada é na lanchonete ao lado do prédio no bairro do Jardim Botânico, onde está morando nos últimos meses, enquanto sua casa em São Conrado continua em obras. Chega o primeiro chope e começa o balanço da carreira. “Nunca abaixei a cabeça diante de propostas indecentes, de tentarem me levar para o lado comercial”, diz o compositor. “Negão como eu, saído do morro, tinha que fazer só samba. Cortei isso de imedia-to”, afirma, lembrando da fama de maldito que teima em persegui-lo. “Me rotularam assim porque nunca fui de abrir perna pra gravadora. Foi até melhor. Se não fosse o marginal e tivesse feito o que eles queriam, talvez não estivesse trabalhando até hoje.”

O autor de “Pérola Negra” não nega as origens. Em casa, no morro considerado o berço do samba – por ter abrigado a Deixa Falar, primeira escola de samba, fundada por Ismael Silva –, Melodia arriscou os primeiros acordes. Foi na viola de quatro cordas que atiçava o ciúme do pai. Quando Oswaldo não estava em casa, o único homem entre seus quatro filhos roubava a viola, até o dia em que o instrumento quebrou. “Meu pai chegou e escondi a viola num vão na parede, mas ela caiu”, lembra o compositor, que na época tinha 12 anos e não escapou da surra.

Do morro, ele conserva lembranças como o coral em que cantava com as irmãs, Marise, Vânia e Raquel, na igreja presbiteriana frequentada pelos pais. “Lá percebi que cantava direito, mas preferia soltar pipa atrás da igreja”, confessa o compositor, que morou no São Carlos até 1973, quando lançou seu primeiro disco, Pérola Negra.

A vida tranqüila na favela faz parte de um passado distante. Para visitar as irmãs no lugar onde nasceu, Melodia tem de esquecer letras de sucessos seus, como “Estácio Holly Estácio”, e telefonar antes para saber se pode subir o morro ou se há tiroteio. “Hoje há rodízio no tráfico. Do pessoal que vende drogas no Estácio, só um ou dois são de lá”, conta ele, saudoso da época em que o poder bélico dos traficantes não era ostentado diante dos moradores. “Só os mais velhos andavam armados. Quando tinha tiroteio, era mais a polícia matando os caras, não tinha essa coisa de guerra entre eles.” O músico ainda sonha em conseguir dinheiro para tirar a família da favela. “Quando o bicho pega vai tudo pra minha casa. Outro dia uma sobrinha não podia subir o morro por causa de tiroteio”, diz ele, que reduziu as idas ao São Carlos. “É muito deprimente ver o lugar onde cresci daquele jeito. Me dá tristeza de chorar.”

Outro motivo recente de tristeza foram as mortes recentes de amigos como o produtor musical Almir Chediak, o compositor Itamar Assumpção e o poeta Wally Salomão. Frequentador do Morro de São Carlos nos anos 70, Wally dirigia o show de Gal Costa em 1972 e incluiu “Pérola Negra” no repertório e deu o impulso definitivo para a carreira do cantor. Foi morando no antigo apartamento do poeta, em Copacabana, que Melodia começou a ter hábitos na Zona Sul, como o de frequentar uma sinuca próxima ao estúdio Mega, onde grava e ensaia, no Humaitá. “Não jogo nada, mas frequento”, diz. A relação com os restaurantes japoneses, outro de seus points prediletos, é mais próxima. O cantor tem até hashis (os tradicionais pauzinhos) próprios em dois restaurantes de São Paulo, mas não conseguiu convencer a mulher, Jane, dos benefícios da culinária japonesa. “Não como nada cru”, afirma Jane.

Da relação que dura 26 anos, nasceu Mahal, único filho do casal. Mahal, 24, passa os dias compondo raps e parece ter herdado a originalidade que fez do pai um músico difícil de ser rotulado. “As letras dele são sofisticadas”, analisa Melodia. Preocupado com a ansiedade do filho em mostrar a própria produção, o autor de “Magrelinha” ao menos tem experiência de sobra para dar conselhos. “Digo a ele pra ficar calmo, porque o pai demorou anos pra aparecer. E até hoje é difícil pra mim.”

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